Sol estourando no céu e você aí, fazendo o quê?
Voltando do trabalho?
Indo para a faculdade?
Ou assim como eu, é seu dia de folga?
Esse clima de verão é agradável (principalmente depois das semanas chuvosas desse mês). Você vai aproveitar esses raios solares para acariciar sua pele ou está ocupado demais escondendo-se em papeladas, compromissos, vídeos e jogatinas virtuais?
Não é só pela vitamina D (Dá para comprar cápsula) e nem pelo bem-estar (você está farto de ouvir dicas de saúde em qualquer lugar que navega pela internet?). É só que...
É bom encerrar o dia. Um ciclo, por assim dizer.
Todo mundo fala em começar algo. Seja um curso, um passatempo, um relacionamento e faz todo sentido se pensarmos que estamos na primavera, mas sejamos sinceros, é também fim de ano, então permite-se finalizar seus projetos em paz sem se preocupar com quantidade e recomeços. O Ano-Novo serve para isso.
Daqui a pouco a noite vai bater a minha porta e eu, hipocritamente, estou escrevendo-lhe isso dentro de casa e pensando no que tenho que fazer pela escuridão que me aguarda a frente.
O que eu quero dizer, ou pretendo dizer, isso já não importa mais, é: está na hora de desacelerar, energia é limitada, portanto, não a gaste com bobiças e ansiedades. Deixe o sol distanciar-se, a luz artificial surgir e as estrelas abandonadas perante os postes com aquele gostinho agridoce de final feliz. Final porque acabou, feliz porque você fez o melhor que podia, independentemente do que tenha acontecido durante essa aventura diária.
Bom descanso e não se esqueça de curtir o seu fim de dia, da forma que for, pois haverá um momento em que não será só um fim de dia.
É o primeiro dia de trabalho de Cláudio.
Jovem, na casa dos 20, cheio de vigor e ainda com um pouco de esperança em tornar-se autossuficiente financeiramente, apesar da realidade claramente não-convidativa para sonhos.
A fábrica da Confeitaria Mielão é uma das mais famosas da região. Bolos, pães, doces e é claro, o carro-chefe, a queridinha, a que dá nome à marca, a torta Mielão: uma torta de melão de origem italiana.
Cláudio ficou feliz quando passou na estranha e estressante entrevista de emprego. O entrevistador olhou-o de cima a baixo e sua expressão era de pura reprovação para as roupas simples do rapaz (eram as melhores que ele tinha).
A pouca experiência também não o ajudava. O que sabia de preparar confeitos aprendeu ajudando a mãe a fazer entregas de salgados e docinhos para fora. O salário mínimo do pai metalúrgico infelizmente não dava para pagar todas as necessidades da família.
Logo, a felicidade dos pais de Cláudio ao saberem da novidade foi comovente. Sua mãe ficou horas no telefone contando toda a fofoca para as tias, irmãs e amigas. O pai foi um pouco mais resmungão, disse que o rapaz não estava fazendo mais que a obrigação, mas seu sorriso de canto carrancudo entregava seu contentamento.
Mas voltando para o presente.
Cláudio está prestes a preparar sua primeira fornada de pão d'água com outros 5 novatos selecionados. O chefe de expressão rígida os orienta, mas o rapaz não consegue parar de olhar a mono celha, as rugas e as linhas de expressão de seu superior. O conjunto da obra fazia-o parecer um personagem de desenho animado.
Do pouco que captou, Cláudio entendeu que os equipamentos eram velhos, enferrujados e apresentavam falhas constantemente; a cozinha era limpa uma vez por semana por uma empresa terceirizada que só de vista, dava para ver que fazia o serviço pela metade. Além disso, alguns utensílios como xícaras e balanças estavam em falta. A medida era feita no olhômetro.
Aos trancos e barrancos, os novatos fizeram a massa do pão francês.
Meio merda, mas dá pro gasto - ouviram o superior dizer em tom desgostoso.
Passada uma semana de frustrações e xingamentos, pois quando não era máquina que estragava, era ingrediente desperdiçado e isso se não errassem a receita ao esquecerem ou colocarem algo que não deviam, mas, em geral, as fornadas pareciam sair para venda.
Isso inquietava Cláudio.
Um tapa nas costas do chefe acordou-o para a realidade. Seu superior estava explicando como fazer a torta Mielão.
A prova final. Se alguém errasse essa receita em específico, era mandado para rua.
Ouvia-se nos corredores que até um funcionário com 20 anos de empresa foi demitido imediatamente após esquecer o "tempero secreto" que nada mais era que a mistura de bolo pronta.
O que foi? São muitas fornadas por dia, não dá para cozinhar todas as massas do zero como se fossem feitas na cozinha da Palmirinha.
Não me julguem. Palavras do dono. - Informou resoluto o chefe.
Iniciada a prova, Cláudio até estava indo bem. Bem até demais. Havia cometido erros constantes durante toda a semana, mas agora tudo era realizado de forma precisa e organizada. Praticamente perfeita.
Seria o desespero de manter a vaga?
Cláudio viu mentalmente os rostos dos pais decepcionados se ele voltasse a ser um Zé Ninguém desempregado.
Ele não podia aceitar isso. Não depois de tanto esforço, seja dos seus progenitores ou o seu próprio.
Mas como a felicidade de pobre dura pouco, um jovem mais baixo, mais novo e mais distraído que Cláudio, esbarrou no nosso protagonista e ele derrubou a bandeja de melão.
Todo aquele açúcar naturalmente divino agora melava o chão.
Só houve tempo para arregalar os olhos, encarar o chefe com a cara vermelha e linhas de expressão bem acentuadas, com direito à veia aparecendo nas têmporas.
O homem era basicamente um demônio. Vociferou contra Cláudio todos os tipos de xingamento existentes e arrastou-o para fora do estabelecimento.
Depois de um belo chute na bunda e o som da porta de metal fechando com força, Cláudio viu-se quase que literalmente no olho da rua.
Tamanha era decepção consigo mesmo que não podia nem chorar. Ainda estava em choque com os últimos acontecimentos.
Não havia nada a ser feito e o sol ainda estava alto no céu, o que significava que todos os seus amigos e parentes ou estavam trabalhando, ou curtindo a vida, logo não poderiam consolá-lo nesse momento aterrador.
O jeito é ir para casa. Os passos arrastados e o semblante fechado passam diante de uma vitrine.
A vitrine de bolos, pães, doces e é claro, a torta Mielão no centro, como uma cantora performando o seu último lançamento, toda enfeitada em ouro.
Entretanto, Cláudio está distraído demais para reparar na vitrine e seguiu reto.
Dentro da confeitaria Mielão, quase metade das mesas e banquetas do balcão estão ocupadas.
É hora do café da tarde para alguns. Uma fuga açucarada da rotina intensa.
Umas moças riem de algo no celular. Um rapaz come uma esfirra enquanto lê as notícias nas redes sociais. Um senhor come lentamente seu pão d'água com mortadela.
Na televisão, durante o intervalo de um desses programas de fofoca da TV aberta, passa uma propaganda da Mielão.
Massas bem amarelinhas em volta de farinha. Caldas reluzentes escorrendo por fuês.
Nas prateleiras da confeitaria, confeitos um pouco murchos, sem cor e com a calda endurecida.
Na propaganda, frutas bem fresquinhas e famílias felizes devorando os doces encerram o comercial com a locução alegre do narrador.
Na realidade, as frutas despencam das sobremesas e uma menina de uns 5 anos mostra-se descontente com um sonho recheado recém-entregue pela atendente.
Ela viu na propaganda um tão bonitinho, fofinho e gostosinho.
Aquele diante de seus olhos parecia pisoteado e tosco, quase seria o pão que o diabo amassou, mas o pouco de arrumação e conserto feito pelas funcionárias dava ao confeito uma aparência razoável.
A menina diz que não vai comer, porque quer um igual o do comercial.
Os pais envergonhados pela atitude dela pedem desculpas e dispensam a atendente.
Insistem que a garota coma, pois como imagino que já tenha ouvido falar, tanta criança passando fome no mundo e você recusando comida? Que coisa feia!
Ela persiste. A mãe ameaça com proibições de brinquedos, passeios e futuros doces no final da semana.
A menina não se importa com nada disso nesse momento. Quer o sonho da tv. É a imagem que ela quer e nem os dois quilos de açúcar com químicos saborizantes a fará gostar do sonho real.
Contudo, após ouvir do pai o quanto estava sendo chata, ridícula e fútil por querer algo que não existe, a garota emudece-se e toma o pobre sonho com o rosto e suas feições voltadas para baixo, formando uma meia-lua.
Seu único pensamento: não é tão ruim, mas poderia ser melhor.
O arrepio é real.
O cômodo escuro e úmido guarda os segredos daqueles que o habitaram por um curto espaço de tempo.
Nossa investigadora passeia pelos corredores de pedra com uma lanterna pequena e bateria fraca que faz a luz piscar. As luzes no ambiente ajudam muito pouco; sua luz alaranjada quase nula só corrobora com o clima tenso.
Esse está longe de ser o trabalho mais desafiador da nossa heroína, mas sabe como é, é sempre melhor estar debaixo de uma coberta quentinha em casa do que procurar um fora da lei desregulado.
Principalmente esse do caso atual. Ele ainda não possui nome, pois, por algum milagre ou sorte, a imprensa não colocou suas belíssimas garras na história recém-descoberta e os envolvidos na operação estão ocupados demais em abafar o caso para sequer nomeá-lo.
Mas ela não. A detetive da delegacia regional mais prestigiada do Estado por sua dedicação incansável e resultados excelentes não se permite largar o caso como um cão não larga seu osso até tirar a última lasca de carne.
Estralo. Tac, tac, tac.
Há alguém aí? - A voz da heroína ecoa pelo corredor.
Tac, tac, tac.
O som parece vir da esquerda dela. Ao chegar ao final do corredor atual, vê dois caminhos: esquerda e direita.
Adivinha para onde ela foi?
Isso mesmo, direita.
Ela não vai cair nesse truque bobo de som na direção contrária para distrair. Pelo menos é o que ela pensa.
Mas pela rota não escolhida, está a entidade.
Não a entidade de sobrenatural tipo fantasma, demônio e afins. Não, não. É mais como uma energia acumulada em um local por uma série de eventos.
Nesse caso, a energia é densa, pesada, quase daria para pegá-la na mão, mas não recomendo, o contato com esse tipo de força não costuma ser muito benéfico para quem recebe (isso se a pessoa não morrer).
Esse acúmulo foi causado pelos vários suicídios e assassinatos realizados nas câmaras localizadas no final dos corredores duplos.
Esse abrigo subterrâneo foi criado inicialmente para abrigar praticantes de religiões não permitidas pelo poder central. Cristãos, muçulmanos, judeus, candomblecistas, budistas... Enfim, nesse mundo de tantas mudanças, todos já tiveram a oportunidade de serem reprimidos. Alguns mais doloridos, ou mais traumatizados, ou mais rancorosos que outros, mas todos unidos em torno da dor e do prazer.
Enquanto não era usado por religiosos, a área subterrânea era usada por rebeldes em busca de drogas ilícitas, brigas ou mesmo sexo, já que o local era mais barato que um motel por ser gratuito, mais privado que becos e é claro, mais seguro.
Mas não pense que só pessoas perdidas na sociedade vão para esse lugar. Não, não. Não mesmo.
Até alguns aristocratas e burgueses já fizeram a sua visita com madames e cavalheiros da luxúria para realizar seus desejos carnais mais depravados e sujos, os quais não podem ser nem sequer cogitados em público por questões morais.
Enfim, tudo o que é reprimido já habitou esse ambiente em algum momento de sua existência. Logo, a energia espalhada pelo ar rarefeito não é lá das mais agradáveis.
A repressão do desejo é uma necessidade.
A repressão do desejo é um perigo.
Panela de pressão causa medo e tranquilidade. Reprimir, também.
Onde está a nossa detetive?
Enquanto divagava, ela chegou à câmera da direita. Não que tenha muita diferença de uma para outra em questões de insalubridade ou mesmo de carga pesada, mas a rota escolhida foi um ganho de tempo para ela. Por enquanto.
A porta de madeira que serve de portal entre o mundo do corredor impregnado de álcool e cheiro podre e o universo estranhamento silencioso da câmara foi aberta. Dentro há apenas tecidos coloridos, desbotados e rasgados, além de uma boneca de pano.
Cabelo castanho de lã, olhos azuis de botão, vestido branco com bordados. O olhar da heroína é de espanto. Ela usava uma roupa igual à da boneca quando era criança. Seus traços físicos também correspondem.
Não pode ser, coincidência. Isso! Coincidência, ela não é a única pessoa do mundo com cabelo castanho e olhos azuis que usou um vestido branco com babados na infância. Pensar nisso a tranquilizou. Não por muito tempo.
A nossa querida entidade está agora na porta. Isso mesmo, ela fez o caminho até a moça beeeemm devagarinho. Não há pressa. O que foi, é e será. Poucos compreendem isso.
O movimento lento e tortuoso leva a entidade até as costas da protagonista. O arrepio faz a detetive soltar a boneca de espanto. A moça olha para trás, mas não vê nada.
Nossa entidade não é algo visível, mas sensível. U U U, se é sensível, ela é a sensibilidade e a não-sensibilidade ao mesmo tempo.
A repressão do desejo leva ao desejo e ao não-desejo. No fim, é tudo um, só a manifestação que aparenta ser diferente.
Antes que pense que vou matar nossa detetive com a entidade, relaxe. Não estou a fim de matar ninguém. Pelo menos não hoje.
Mas uma coisa eu garanto. Aquele arrepio provocou coisas e sentimentos nela que não serão esquecidos, pois aquilo que se escondia nas profundezas dessa moça foi revisitado em um relampejo de assombro.
Até porque, esses entulhos mentais e de alma não surgem somente em momentos dramáticos e sombrios. Não, não, eles são construídos lenta e silenciosamente, até que o vapor começa a sair.
Por isso crianças, não cozinhem seus sentimentos e desejos em panelas de pressão, eles não são legumes e grãos para serem pressionados e reprimidos para amolecerem e serem devorados pelas suas lindas boquinhas.
Eles são como a água: sempre vão arranjar algum jeito de escapar do controle de quem quer que seja, mesmo que para isso tenham que explodir algo no meio do processo.
Então, tome cuidado com o que reprime e pressiona, senão as amiguinhas da nossa entidade vão visitá-lo e será uma visita nada agradável.
Só pelo arrepio você saberá.
Um quarto aconchegante e escuro. A única iluminação vem das frestas da cortina. O dia está amanhecendo.
O rapaz está jogado em sua cama, envolto em um tecido leve que usa como cobertor e veste somente a roupa íntima. Muito tecido o deixa desconfortável.
Ele rola sobre a superfície macia. O despertador está tocando enlouquecidamente, avisando-o que é hora de levantar e começar um novo dia.
Um resmungo baixo. Ele coloca o despertador do celular para apitar novamente daqui a cinco minutos. Ele continua em negação.
A escuridão do quarto vai diminuindo bem devagar. Ele odeia a luz do sol entrando no quarto como um penetra na deliciosa festa onírica dele.
A noite... O que é a noite? A falta de luz? De sol? Hora de dormir? Hora de festejar? Hora de fazer coisas ilícitas e/ou vergonhosas segundo o código moral?
O sono dele estava tão bom... Com o que sonhava? Não vou dizer, deixo essa lacuna para sua imaginação.
5 minutos se passaram. A melodia padrão de despertador do celular volta a preencher o cômodo.
Mas que incômodo! Não importa quantas vezes ele coloque no modo soneca, ainda terá que levantar-se em algum momento e encarar as pequenas batalhas do dia a dia.
Ele espera. A sala é azul-claro com chão de piso branco. Algumas folhinhas aqui e ali, cadeiras para os pacientes. Uma tvzinha, algumas revistas velhas na mesinha e um balcão de recepção branco.
Tudo transmite tranquilidade e paz. Até ele. O rapaz parece uma estátua decorativa no cômodo.
Ele não sabe o que esperar do novo médico.
Não que ele devesse se preocupar muito, está na casa dos 30, ainda muito novo.
É apenas uma questão de curiosidade.
O relógio na parede marca 9:57h. Três minutos. Isso se o médico o atender na hora marcada.
Usa sapato social, camisa social, calça social. Tudo social, menos ele. Os amigos ficaram perdidos nas escolas e faculdades da vida. Namorada, namorado, namorade?? Ele não faz ideia do que é isso. O amor nunca lhe bateu a porta. Será que o amor ao menos sabe o endereço dele? Não sei, mas se soubesse, também não faria diferença, porque ele nunca sentiu atração, seja romântica ou sexual, por ninguém (os rapazes do colégio zoavam ele por isso).
Será que ele viveu errado?
Será que ele está vivendo errado?
Todo mundo sempre elogiou e ainda elogia seu desempenho acadêmico e profissional, sua boa educação e cavalheirismo.
Mas ele está só.
Mesmo na sala de espera, pois a recepcionista saiu para atender um telefonema e ainda não voltou.
Ele não sabe o que sentir em relação a esses momentos de silêncio.
Há o que sentir?
As pessoas ao seu redor dizem que sim, que estar sozinho faz mal para o corpo, para mente, para o espírito e até para quem convive com o solitário.
Mas ele não parece se importar. Tão pouco se importa que nem o medo de estar sozinho passa-lhe na cabeça.
10:00h. A porta do consultório é aberta. Um sorriso branco, pouco cabelo, óculos com armação grossa, barba rala, roupas claras como o ambiente e sapatos pretos se revelam e pedem para que ele entre.
Ele levante-se devagar da cadeira acolchoada. Não há por que correr. Ele está ali a pedido da mãe. A mulher não aguenta ver o filho tão-só.
Ele também anda devagar até a porta. Nada dessa pressa e desaforo da vida contemporânea.
O tempo quando desaceleramos...
Ele morre? Ele vive?
Não fazer nada é matar tempo? Por que fazer algo?
A lentidão desse rapaz faz-me querer alguns tempos mortos também.
Estela é a minha filha de 2 anos. 24 meses e pouco de vida, então o mundo ao seu redor é um laboratório cheio de experimentos e coisas novas para aprender.
A sua mais recente aventura é tentar encaixar as peças em um brinquedo de encaixe (daqueles que tem várias formas e a criança tem que colocar a peça no buraco com a forma correspondente). Para ela, ainda é difícil compreender que um círculo não cabe em um trapézio, que um triângulo nada tem a ver com um hexágono e mais insistentemente, que estrelas não cabem em quadrados. (É sério, vocês precisam ver ela forçando a estrela no quadrado, é uma espécie de comédia trágica, onde o herói tenta ao máximo vencer os desafios, mas é derrotado pela própria ignorância).
A sala do nosso apartamento pequeno já foi um universo maior para ela (leia-se cômodo bagunçado com brinquedos para todo lado), mas a sua nova obsessão tem mantido o ambiente bem-organizado (tirando as peças do brinquedo de encaixe espalhadas pelo chão de madeira laminada). Ela costumava pegar o giz e usar as paredes e as cortinas de tela (é assustador quando você vê uma dessas “obras de arte” pela primeira vez, mas quando aprende a limpar, nem é tão ruim assim, ainda mais no meu caso, já que a Estela ajuda a remover o desenho). As “obras de arte” somem do suporte, mas não da nossa existência, já que ela faz questão que eu ou meu esposo fotografemos todas antes de apagar.
Já faz alguns dias que ela está aficionada nas formas e em seus encaixes. Ela briga, berra, joga longe, chora, bate, força as peças (tenho a sorte de ter vizinhos tolerantes). Os sons emitidos por ela já fazem parte da trilha sonora do apartamento, como se sempre estivessem aí, escondidos, só esperando o momento certo para se mostrarem.
Estou preparando o nosso almoço, bem simples e nutritivo, como a nutri mesmo falou. Algumas verduras e legumes bem molinhos para ela (os dentes dela continuam crescendo, então vamos facilitar a vida da menina, né, minha gente?). A bonita não parece muito preocupada com isso, cabe a mim se preocupar por ela.
Enquanto divago e cozinho ao mesmo tempo (prazer, talento de mãe), meu esposo volta do mercado com as compras da semana. Ele coloca as poucas sacolas no balcão e aproxima-se de mim, colocando os braços ao meu redor e as mãos no balcão, restringindo meus movimentos.
“Tô admirado que você ainda não surtou com os gritos da Estela. Pensei que, em menos de cinco minutos, você já taria colocando as peças pra ela.” - diz ele baixo perto do meu ouvido.
“Sai, capeta. Deixa eu cozinhar em paz”. - digo brincando, mas levemente irritada.
“Ai, que rude! Tá bom, me avisa quando surtar. Eu sou um ótimo Rivotril, sabia?”
“Ah é? Se é tão bom assim, por que não te achei na farmácia?”
“Sabe como é, eu sou exclusivo. Exclusivamente seu.”
“Nossa, tem dias que eu me pergunto por que casei contigo, cara.”
“Ok, falando sério agora, você vai deixar a criança brigando com o brinquedo até quando?”
“Até ela aprender a colocar as peças na forma certa.”
“Mesmo que isso custe os nossos tímpanos e os dos vizinhos?”
“Aham. Aprendizagem é um processo demorado, já dizia algum grande sábio que eu não faço a ideia do nome.”
“Entendi, beleza então. Você sabe que o que você decidir, pra mim tá ótimo. Ouu, a comida, falta fazer alguma coisa ou?...”
“Não precisa, obrigada. Só guarda as compras que já tá bom.”
Nesse meio tempo, Estela estava tirando um cochilo (acho que teimar com algo cansa).
No final da tarde do mesmo dia, quando estava retirando a roupa do pequeno varal na varanda, escuto um berro diferente dos anteriores. Quase soa como um Eureka! Misturado com alegria. Estela me chama.
“Mamá, mamá, ola ki, ola ki.”
“Já tô indo, meu bem”.
Saio da varanda ao atravessar a porta de vidro que separa os dois ambientes e vejo que a peça estrelar não está mais no chão. O sorrisinho banguela no rosto dela é uma imagem tão fofa e bela que eu me recuso a compartilhá-la, como se fosse um segredo só meu, como se fosse uma benção só para mim. Na verdade, Estela é a minha benção desde o momento em que se formou na minha barriga.
Ela conseguiu. No seu tempo, espaço e habilidade. Este é um pequeno passo para a infância, mas um grande passo para a vida. Afinal, quantas vezes tentamos encaixar estrelas em quadrados até nos darmos conta de que não cabem?
Estou esperando a colheita. Do quê? Não sei. É muita preguiça minha não planejar cada mínimo detalhe da vida até os próximos 10, 20, 40 anos?
Eu sei que as coisas vão mudar por si mesma. Isso faz parte da vida, na verdade, a mudança em si é vida, então por que tentar calcular tudo nos mínimos detalhes se, de uma forma ou de outra, as mudanças vão “estragar” ou “atrasar” os planos?
Não me entenda mal, um pouco de organização é sempre bom; ajuda a ganhar tempo. Mas tempo para quê? Por que você quer mais tempo? Por que contamos o tempo? Qual é o verdadeiro valor dele?
Os animais não parecem se importam com o tempo. As plantas, muito menos. Eles só existem e existir por si só é uma dádiva.
Não uma benção, no sentido de dívida eterna para com uma divindade/sistema, mas sim uma dádiva, uma presença que deve ser respeitada e celebrada na sua essência, independentemente da forma.
Então, eu pergunto: até que ponto coisas como cultura, leis, moral, ética, tempo, dinheiro e tantas outras invenções humanas valem? Qual é o verdadeiro preço que estamos pagando por elas? Está valendo a pena?
Entretanto, tenho plena consciência de que sumir com essas criações é impossível, porque criar faz parte da natureza humana. O ser humano em si faz parte da natureza. Ele é a natureza. Logo, qual seria o melhor caminho? Existe um melhor caminho ou bem e mal só seriam valores de juízo que utilizamos para medir as situações com suas probabilidades e compararmos com referências anteriores?
Trabalhar em conjunto com o fluxo (O que alguns chamam de Deus, de Universo, de divindade, de natureza, de Tao, eu carinhosamente costumo chamar de fluxo) não é uma opção, nem uma imposição, muito menos um caminho de mão única. Está mais para um guia, um sentimento, um preenchimento no peito que só pode ser compreendido por aqueles que se põem a árdua tarefa de sentir a si próprios.
Plantei algumas dúvidas. Colhi nenhuma resposta. Mas, preciso sempre colher algo?
(E pensar que tudo isso começou porque eu colhi algumas frutinhas piquituchas, roxas e doces enquanto caminhava na beira-rio).
Ninguém da vila vai lá. Eu não sei do que eles têm tanto medo. É só um buraco, não é?
A minha vila é composta por cabanas de madeira e palha; a grama é vasta e muda com a estação. Mas o que mais chama a atenção dos viajantes e mesmo das vilas vizinhas são os tecidos coloridos com padrões geométricos ou animalescos.
A matriarca de cada família quem os produz e cada menina faz o seu próprio tecido.
O meu é um tecido de fundo rosa-forte, quase púrpura, com colunas em forma de diamantes sobrepostos com as cores azul, dourado e preto.
A escolha das cores e formatos é algo instintivo, não lógico. Quando a minha mãe deu-me os materiais, eu apenas os olhei e decidi o que fazia sentido ou não na composição da costura.
Os significados e simbolismos eu deixo para os estudiosos. Gosto da força emanada pelo desconhecido que vem da minha obra.
Mas voltando ao buraco...
Ele é como um lixo. Nele vai coisas que não queremos mais, além de animais que caem em nossas armadilhas.
O buraco é tão grande que não consigo ver o fundo. O que será que tem lá?
Às vezes, passo horas olhando para o buraco e ele olha para mim de volta. Estamos nos comunicando.
Minha mãe e minhas tias vivem preocupadas comigo, dizendo que a minha mania de olhar para o buraco impede-me de ser uma boa mulher.
Mas o que é ser uma boa mulher? Eu não sei e quando faço essa pergunta para as meninas e moças da vila, todas elas falam de particularidades como beleza, cuidado, casa, prole, família.
Apenas a anciã deu-me uma resposta diferente: ser mulher é ser vida, ser natureza.
Se ser mulher é ser vida ou mesmo natureza e a minha natureza diz que devo contemplar o buraco em tempos de introspecção, não estaria eu já sendo uma boa mulher?
Mas não vou mentir, há dias em que eu tenho um pouquinho de medo do buraco.
Ou será medo de mim mesma, tão frágil como um dente-de-leão, que com um sopro, posso ser levada para longe, longe e não saber onde pousar?
Não sei. Acho que tenho que conversar mais com o buraco.
Estou em posição. Daqui a pouco o Tiago joga a bola. Eu sei que vou acertar dessa vez. O time conta com isso para vencer a aposta.
A bola é lançada e eu falho. Os moleques do meu time raspam a mão no meu cabelo e me dão tapas.
- Mas tu és um bunda mole mesmo, Jão. Nem acertar uma bola tu consegues - diz Felipe, o capitão do time e um dos garotos mais velhos do grupo da rua.
- Agora nós temos que ir lá na venda do seu Antônio comprar bala pra esses zés ruelas - reclama Danilo, um moleque da minha idade e mais baixo do que eu.
-Vocês têm moeda aí? Tô sem nenhum tostão, o pai me tirou a mesada porque quebrei o vaso da vizinha jogando bola. - Questiona Murilo para o time.
- Oh Jão, pega dinheiro lá com a tua vó. Aposto que ela não vai se importar. - Diz Danilo batendo nas minhas costas.
- Não sei não. Ela nem gosta dessas coisas de aposta. - Respondo.
- Mas foi você que fez a gente perder, então vai lá e pega o dinheiro, senão vou te acabar no soco, seu pamonha - Retruca Danilo.
Felipe acalma os ânimos e me puxa de canto.
- Relaxa, garoto, a mulher deve tá tirando o cochilo da tarde igual toda velha faz. Vai lá, bem de fininho, pega a grana sem acordar ela e traz pra cá. - Ele sussurra.
- Mas e se ela descobrir? - Pergunto com medo.
- Oh marica, me escuta, os moleques já tão tudo bravo querendo te encher de porrada. Acho melhor você se apressar.
- Tá, eu vou. Mas se ela perguntar, vou dizer que vocês me obrigaram.
- Tá, tá, só vai logo. — Ele me expulsa e me manda embora com um gesto de mão.
Dá uns cem metros da minha casa até onde a gente estava jogando taco. Abro a porta e vejo se não tem ninguém na cozinha/sala de estar/sala de jantar. A casa é velha, de madeira e cheia de rosário e santinho para todo lado. No calendário de 2008, tem uma imagem de Jesus e a folha de cima mostra que é março. Há também um círculo azul de caneta no dia 23, meu aniversário de 10 anos, que será daqui a uma semana.
Me pergunto se a mãe vai conseguir tirar folga de um dos serviços dela para vir na minha festa. Vai ser com o tema do Batman, pelo menos foi o que a vovó disse.
Mas chega de enrolação. Pegar dinheiro na gaveteira da vovó e entregar para os moleques.
É fácil. Eu consigo. É só não fazer barulho. Eu consigo. Relaxa, Jão, se ela descobrir, não vai te matar (eu acho).
Abro a porta do quarto da vovó bem devagarinho. Ela está cochilando na cadeira e a televisão está ligada em canal de igreja.
Passo por ela na ponta dos pés e me aproximo da gaveteira. Abro bem lentamente a gaveta de cima.
O padre na televisão aumenta o volume da voz: "Vejam, irmãos e irmãs".
Levo um susto. Minha avó acorda e se vira na minha direção.
- O que está procurando aí, meu filho? - Diz ela rouca e sonolenta.
- Nada vó. Tava arrumando pra senhora.
- Meu filho, não mente, Deus está vendo e seu anjinho da guarda também.
- Tá bom, tá bom. Eu tava procurando as fotos que a mãe tirou de quando eu era bebê pra mostrar pros meus amigos pra provar pra eles que eu era bonito.
- É mesmo? Mas então você está olhando a gaveta errada. O álbum tá na gaveta de baixo.
O padre na tela aumenta a voz mais uma vez: "Não caiam nas armadilhas do diabo, irmãos, ele possui muitos rostos e formas"
Minha vó vira para televisão nesse momento e aproveito para pegar algumas moedas espalhadas na gaveta aberta. Fecho com cuidado e abro a de baixo. Puxo o álbum.
- Já peguei o álbum. Obrigada vovó. - Digo, chamando a atenção dela.
Vou em direção à saída do quarto, mas ela me chama.
- Meu filho, senta aqui um pouco com a vó. Faz tempo que a gente não conversa.
Penso em fugir logo para resolver a situação, mas fico. Não quero magoá-la. Vou em direção a ela e sento em seu colo.
Ela me dá um sorriso banguela, mas bonito. Ela me abraça e me aconchega em seu colo.
— Só queria te olhar e pegar no colo que nem quando você era um bebezinho. Olha no álbum, tem foto disso, tenho certeza. A sua mãe tirou várias.
Abro o álbum que estava em meus braços e encontro o que a vovó falou. Realmente há várias, mas a que me chama mais atenção é uma foto em que a vovó está ajoelhada no chão e eu e meu primo José Cristiano estamos próximos dela brincando.
- Essa foto é a minha favorita também. Ela me lembra da foto que o padre Alberto me mostrou de uma pintura da Nossa Senhora. Qual era mesmo o nome? Tinha o nome dela em italiano, se não me engano... Madonna... Madonna de... esqueci o resto do nome, mas era muito bonito o desenho. - Ela diz com um sorriso leve no rosto.
Continuamos ali. Eu no colo dela e ela me admirando em silêncio feliz. Estou ficando com sono.
Quase adormeço quando escuto alguém batendo forte na porta e lembro dos moleques.
Saio correndo sem me despedir com as moedas no bolso da bermuda.
É nesses momentos em que tenho que agradecer a minha senhora. Sem ela, não teria nem dinheiro para os moleques e nem amor de mãe. Te amo, Ma... Mado... Sei lá, o nome estranho da Nossa Senhora.
Mais um dia desse verão interminável na praia. Meus pais insistem em me trazer toda vez com a desculpa de que “é um momento para se estar em família”. Bobagem, eles só têm medo de eu explodir a casa enquanto eles estiverem fora.
Estou no cais. Ele é de madeira velha e dá para sentir o cheiro de mofo molhado, além de algumas algas marinhas perdidas. Houve um tempo em que meu avô, com outros pescadores, saía para pescar tainha pela manhã e só voltava de tardinha, com o sol se pondo. Agora o cais está aqui, sozinho, diante desse mar infinito.
É por isso que eu gosto daqui. O cais e eu, eu e o cais. É quase como se ele fosse uma representação minha em estrutura: um ser abandonado e perdido diante do tempo, um ser que já teve um passado melhor.
Quando cansei de admirar o oceano e as minhas lamentações, andei pela praia. A areia incomoda os meus pés, mas é de boa. Há coisas piores. No meio da caminhada, encontro uma cebola. Sim, uma cebola. Verde, com a casca laranja-amarronzada e inteira, ali, do nada. Quem será o doido que a deixou aqui? Vou levar, vai que eu acho o dono...
Passaram-se três dias. Ninguém apareceu para reclamar o legume perdido, ou pelo menos eu não ouvi nada dos meus pais (e olha que eles são fofoqueiros e adoram saber qualquer historinha que tem por aí). Volto para mais um dia no cais olhando para a imensidão do mar. Escuto passos. Isso não é comum. Essa praiazinha onde estou é esquecida por Deus e o mundo. As pessoas preferem as mais badaladas, com vários guarda-sóis, vendedores ambulantes, bolas, castelos de areia e poluição. Viro-me para ver quem é.
É um cara, deve ter a minha idade ou um pouco mais velho. Cabelo preto grande e bagunçado. Roupas simples e amarrotadas. Ele olha para areia procurando por algo.
“Ei, você aí!” - Chamo a atenção dele.
Ele vira em minha direção assustado.
“Tá procurando por isso?” - Tiro a cebola da bolsa que sempre carrego comigo e levanto bem alto o meu braço.
Na mosca! Ele vem em minha direção, agradece a ajuda e vai embora. Ou iria embora, porque eu não posso deixar de saber por que cargas d’água ele carrega uma cebola.
“Desculpa estar sendo metida, mas por que é que você carrega uma cebola por aí?”
Ele para o trajeto de ida, hesita. Não parece ser algo tão simples como uma mania esquisita.
“Olha, eu juro que não conto pra ninguém. Boquinha de siri.” - Faço o gesto de fechar a boca como se fosse um zíper.
Ele volta o corpo em minha direção. Boa, consegui fazê-lo mudar de ideia...
Agora estamos no cais. Os dois em um silêncio ensurdecedor. Até que ele murmura.
“A cebola...” - respira pesado.
“A cebola é uma promessa boba que fiz para a minha mãe. Ela criou eu e meu irmão mais novo sozinha. Meu pai a largou quando estava grávida de mim, então meio que eu sou o homem da casa. Sempre forte, nunca demonstrar... sentimentos, principalmente chorar, isso nunca, porque como ela dizia “chorar é coisa de gente fraca e desocupada. Vê se eu tenho tempo pra essas palhaçadas” (pausa). Ela morreu recentemente em um acidente de carro. Um cara bêbado a tirou da pista e o carro capotou. Ela nem teve chance de ser socorrida. Na noite que isso aconteceu, antes de começar a preparar as coisas para o velório, eu estava em estado de choque, sem reação. Quando a vi no caixão, não saiu uma lágrima sequer, as pessoas me encararam como se eu não a amasse, sabe? (pausa). Foi tenso. Então, quando voltei pra casa, tentei me forçar a chorar cortando cebola, mas eu não tive coragem sequer de encostar a faca. Era como se chorar significasse decepcioná-la, já que ela não iria querer um filho chorão, mas ela não merece isso. Todo mundo tem que ter alguém que chore quando a gente morre e meu irmão ainda é muito pequeno para ter noção das coisas. Desde então, eu prometo para mim mesmo que um dia eu vou cortar uma cebola e chorar por ela”. - Ele dá um suspiro de alívio.
“Uau, ok, por essa eu não esperava. História bonita a sua, mas só uma dúvida: essa cebola é a mesma que a desse dia?”
“Claro que não. Se fosse, já estaria estragada e eu não suporto cheiro forte”.
“Entendi. A vida é bem estranha às vezes, né?”
“Como assim?”
“Tipo, a vida e, consequentemente, as pessoas, têm várias camadas, igual a esta cebola. E se você “descascar e cortá-las”, você chora, mesmo que simbolicamente, tipo, no sentido que você sente por elas; E isso arde, mais para alguns do que para outros”.
“Cê toma alguma coisa ou?”
“Claro que não. É só umas brisas que eu tenho de vez em quando.” - Digo indiferente.
Depois do momento motivacional, falamos sobre coisas mais banais. Alguns dias depois, eu o vejo no cais. Seu corpo tensionado e seu braço erguido com um objeto redondo na mão indicam que ele pretende arremessá-lo.
“Ooouu, pera, o que você está fazendo?” - berro na tentativa de interromper o rapaz.
“Por que eu sou assim? Por que eu não consigo chorar? Por que eu não consigo dizer o que sinto? Por que eu não consigo nem falar um “eu te amo” ou abraçar o meu irmão quando ele tá mal?! Que merd@ de irmão eu sou!” - Ele diz irritado, num ataque de raiva.
“Vamo lá. Larga essa cebola e repete comigo. Inspira um pouco, para, inspira mais um pouco até encher a barriga que nem um balão. Segura um pouco. Agora, solta todo ar pela boca. Isso, mais uma vez.”
Após algumas respirações profundas, ele parece mais calmo. Finalmente, percebo que uma parte da cebola está mordida.
“Você tentou comer uma cebola crua?!”
“Sim, quando a gente tá mal, não pensa muito bem. Os pouco neurônios que eu tenho já
desistiram de trabalhar.”
“Mas você não pode comer uma cebola crua, abençoado, isso arde. Arde pra car@lho. Seu estômago e seu hálito te odeiam por três dias inteiros se você fizer isso.”
Ele ri do meu comentário. Definitivamente, ele está melhor.
“Vem comigo. Minha casa é aqui perto da praia. Eu vou te ensinar como comer uma cebola direito.”
Ele aceita o convite.
Em casa, pego a frigideira, o azeite e peço para que ele me passe a cebola, a qual ele entrega prontamente.
“Tens alguma receita que você goste que vai cebola?”
“Minha mãe fazia bife acebolado quando era o meu aniversário.”
“Boa, melhor ainda, deve ter um pedaço sobrando do churrasco do fim de semana.”
Coloco todos os meus dotes culinários em ação enquanto ele me observa curioso e atento, além de jogarmos alguma conversa fora. Termino a receita e ele arruma os pratos na mesa.
“Seus pais não deveriam estar em casa?” - Ele questiona.
“Não. Eles passam o dia fora com os amigos. A gente sai junto de vez às vezes.”
“Pelo jeito eu não sou o único com problema em se relacionar com os outros.”
“Shiu! Silêncio. Eu sou a coach aqui, sou eu que faço discursos “aparentemente” (faço aspas com a mão) profundos e ganho muito dinheiro, mesmo quando eu sou uma bagunça emocional ambulante, beleza?”
“Ah, saquei, e quanto te devo?”
“Pelo menos uns 30 pila pelo bife.”
“Pah, mas tá muito caro.”
“A inflação, querido, a inflação. Não posso abaixar o preço.”
“Tá certo, então deixa eu comer antes que esfrie.”
Ele coloca um pedaço do bife com alguns pedacinhos de cebola na boca. Um sorrisinho aparece no rosto dele, seguido de uma lágrima.
“Igualzinho o que a minha mãe fazia. Simples, sem frescura e muito gostoso.”
“Tais chorando?”
“Não sei, eu tô? Eu sinto a minha bochecha molhada.” - Diz ele quando, enfim, percebe as lágrimas.
“Parabéns, você cumpriu sua promessa; Chorou com a cebola.”
“Não foi bem com a cebola.” - Ele diz entre pausas para soluçar.
“E daí? Você finalmente conseguiu colocar pra fora o que sentia por ela”.
“Eu pensei que fosse pior chorar.” - diz ele depois de uma fungada.
“Por quê? Tipo, ok que pelo menos quando eu choro, meu nariz entope, minha cara fica quente e vermelha e dói a minha cabeça, mas é bom. Eu gosto, de vez em quando, mas gosto.”
“Entendi. Confuso essa coisa de expressar o que a gente sente. De “descascar” a cebola, como cê disse antes. Mas alivia, sabe? Tipo, tirou um peso de mim que eu nem sabia que tava aqui. Obrigada, sério, valeu mesmo.” - Ele complementa
“De nada. Para mais lições sobre como ser bem resolvido consigo mesmo, é só comprar o meu curso por 500 reais. Aproveita que tá com desconto.”
Ele ri. Nós rimos. Esse é um momento breve, mas feliz. É realmente bom ter alguém por perto para não ser uma cebola perdida nas areias do tempo e esquecida numa praia.
Jornada pela Expressão Humana
Érica Favarin Dandolini cursa Cinema e Audiovisual na Universidade do Sul de Santa Catarina. Estagiária do Portal SCTodoDia desde 2022, já produziu podcasts e pequenos noticiários para o site. Atualmente, cuida das redes sociais, além de ser escritora de crônicas, contos e poemas.
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