Mais um dia desse verão interminável na praia. Meus pais insistem em me trazer toda vez com a desculpa de que “é um momento para se estar em família”. Bobagem, eles só têm medo de eu explodir a casa enquanto eles estiverem fora.
Estou no cais. Ele é de madeira velha e dá para sentir o cheiro de mofo molhado, além de algumas algas marinhas perdidas. Houve um tempo em que meu avô, com outros pescadores, saía para pescar tainha pela manhã e só voltava de tardinha, com o sol se pondo. Agora o cais está aqui, sozinho, diante desse mar infinito.
É por isso que eu gosto daqui. O cais e eu, eu e o cais. É quase como se ele fosse uma representação minha em estrutura: um ser abandonado e perdido diante do tempo, um ser que já teve um passado melhor.
Quando cansei de admirar o oceano e as minhas lamentações, andei pela praia. A areia incomoda os meus pés, mas é de boa. Há coisas piores. No meio da caminhada, encontro uma cebola. Sim, uma cebola. Verde, com a casca laranja-amarronzada e inteira, ali, do nada. Quem será o doido que a deixou aqui? Vou levar, vai que eu acho o dono...
Passaram-se três dias. Ninguém apareceu para reclamar o legume perdido, ou pelo menos eu não ouvi nada dos meus pais (e olha que eles são fofoqueiros e adoram saber qualquer historinha que tem por aí). Volto para mais um dia no cais olhando para a imensidão do mar. Escuto passos. Isso não é comum. Essa praiazinha onde estou é esquecida por Deus e o mundo. As pessoas preferem as mais badaladas, com vários guarda-sóis, vendedores ambulantes, bolas, castelos de areia e poluição. Viro-me para ver quem é.
É um cara, deve ter a minha idade ou um pouco mais velho. Cabelo preto grande e bagunçado. Roupas simples e amarrotadas. Ele olha para areia procurando por algo.
“Ei, você aí!” - Chamo a atenção dele.
Ele vira em minha direção assustado.
“Tá procurando por isso?” - Tiro a cebola da bolsa que sempre carrego comigo e levanto bem alto o meu braço.
Na mosca! Ele vem em minha direção, agradece a ajuda e vai embora. Ou iria embora, porque eu não posso deixar de saber por que cargas d’água ele carrega uma cebola.
“Desculpa estar sendo metida, mas por que é que você carrega uma cebola por aí?”
Ele para o trajeto de ida, hesita. Não parece ser algo tão simples como uma mania esquisita.
“Olha, eu juro que não conto pra ninguém. Boquinha de siri.” - Faço o gesto de fechar a boca como se fosse um zíper.
Ele volta o corpo em minha direção. Boa, consegui fazê-lo mudar de ideia...
Agora estamos no cais. Os dois em um silêncio ensurdecedor. Até que ele murmura.
“A cebola...” - respira pesado.
“A cebola é uma promessa boba que fiz para a minha mãe. Ela criou eu e meu irmão mais novo sozinha. Meu pai a largou quando estava grávida de mim, então meio que eu sou o homem da casa. Sempre forte, nunca demonstrar... sentimentos, principalmente chorar, isso nunca, porque como ela dizia “chorar é coisa de gente fraca e desocupada. Vê se eu tenho tempo pra essas palhaçadas” (pausa). Ela morreu recentemente em um acidente de carro. Um cara bêbado a tirou da pista e o carro capotou. Ela nem teve chance de ser socorrida. Na noite que isso aconteceu, antes de começar a preparar as coisas para o velório, eu estava em estado de choque, sem reação. Quando a vi no caixão, não saiu uma lágrima sequer, as pessoas me encararam como se eu não a amasse, sabe? (pausa). Foi tenso. Então, quando voltei pra casa, tentei me forçar a chorar cortando cebola, mas eu não tive coragem sequer de encostar a faca. Era como se chorar significasse decepcioná-la, já que ela não iria querer um filho chorão, mas ela não merece isso. Todo mundo tem que ter alguém que chore quando a gente morre e meu irmão ainda é muito pequeno para ter noção das coisas. Desde então, eu prometo para mim mesmo que um dia eu vou cortar uma cebola e chorar por ela”. - Ele dá um suspiro de alívio.
“Uau, ok, por essa eu não esperava. História bonita a sua, mas só uma dúvida: essa cebola é a mesma que a desse dia?”
“Claro que não. Se fosse, já estaria estragada e eu não suporto cheiro forte”.
“Entendi. A vida é bem estranha às vezes, né?”
“Como assim?”
“Tipo, a vida e, consequentemente, as pessoas, têm várias camadas, igual a esta cebola. E se você “descascar e cortá-las”, você chora, mesmo que simbolicamente, tipo, no sentido que você sente por elas; E isso arde, mais para alguns do que para outros”.
“Cê toma alguma coisa ou?”
“Claro que não. É só umas brisas que eu tenho de vez em quando.” - Digo indiferente.
Depois do momento motivacional, falamos sobre coisas mais banais. Alguns dias depois, eu o vejo no cais. Seu corpo tensionado e seu braço erguido com um objeto redondo na mão indicam que ele pretende arremessá-lo.
“Ooouu, pera, o que você está fazendo?” - berro na tentativa de interromper o rapaz.
“Por que eu sou assim? Por que eu não consigo chorar? Por que eu não consigo dizer o que sinto? Por que eu não consigo nem falar um “eu te amo” ou abraçar o meu irmão quando ele tá mal?! Que merd@ de irmão eu sou!” - Ele diz irritado, num ataque de raiva.
“Vamo lá. Larga essa cebola e repete comigo. Inspira um pouco, para, inspira mais um pouco até encher a barriga que nem um balão. Segura um pouco. Agora, solta todo ar pela boca. Isso, mais uma vez.”
Após algumas respirações profundas, ele parece mais calmo. Finalmente, percebo que uma parte da cebola está mordida.
“Você tentou comer uma cebola crua?!”
“Sim, quando a gente tá mal, não pensa muito bem. Os pouco neurônios que eu tenho já
desistiram de trabalhar.”
“Mas você não pode comer uma cebola crua, abençoado, isso arde. Arde pra car@lho. Seu estômago e seu hálito te odeiam por três dias inteiros se você fizer isso.”
Ele ri do meu comentário. Definitivamente, ele está melhor.
“Vem comigo. Minha casa é aqui perto da praia. Eu vou te ensinar como comer uma cebola direito.”
Ele aceita o convite.
Em casa, pego a frigideira, o azeite e peço para que ele me passe a cebola, a qual ele entrega prontamente.
“Tens alguma receita que você goste que vai cebola?”
“Minha mãe fazia bife acebolado quando era o meu aniversário.”
“Boa, melhor ainda, deve ter um pedaço sobrando do churrasco do fim de semana.”
Coloco todos os meus dotes culinários em ação enquanto ele me observa curioso e atento, além de jogarmos alguma conversa fora. Termino a receita e ele arruma os pratos na mesa.
“Seus pais não deveriam estar em casa?” - Ele questiona.
“Não. Eles passam o dia fora com os amigos. A gente sai junto de vez às vezes.”
“Pelo jeito eu não sou o único com problema em se relacionar com os outros.”
“Shiu! Silêncio. Eu sou a coach aqui, sou eu que faço discursos “aparentemente” (faço aspas com a mão) profundos e ganho muito dinheiro, mesmo quando eu sou uma bagunça emocional ambulante, beleza?”
“Ah, saquei, e quanto te devo?”
“Pelo menos uns 30 pila pelo bife.”
“Pah, mas tá muito caro.”
“A inflação, querido, a inflação. Não posso abaixar o preço.”
“Tá certo, então deixa eu comer antes que esfrie.”
Ele coloca um pedaço do bife com alguns pedacinhos de cebola na boca. Um sorrisinho aparece no rosto dele, seguido de uma lágrima.
“Igualzinho o que a minha mãe fazia. Simples, sem frescura e muito gostoso.”
“Tais chorando?”
“Não sei, eu tô? Eu sinto a minha bochecha molhada.” - Diz ele quando, enfim, percebe as lágrimas.
“Parabéns, você cumpriu sua promessa; Chorou com a cebola.”
“Não foi bem com a cebola.” - Ele diz entre pausas para soluçar.
“E daí? Você finalmente conseguiu colocar pra fora o que sentia por ela”.
“Eu pensei que fosse pior chorar.” - diz ele depois de uma fungada.
“Por quê? Tipo, ok que pelo menos quando eu choro, meu nariz entope, minha cara fica quente e vermelha e dói a minha cabeça, mas é bom. Eu gosto, de vez em quando, mas gosto.”
“Entendi. Confuso essa coisa de expressar o que a gente sente. De “descascar” a cebola, como cê disse antes. Mas alivia, sabe? Tipo, tirou um peso de mim que eu nem sabia que tava aqui. Obrigada, sério, valeu mesmo.” - Ele complementa
“De nada. Para mais lições sobre como ser bem resolvido consigo mesmo, é só comprar o meu curso por 500 reais. Aproveita que tá com desconto.”
Ele ri. Nós rimos. Esse é um momento breve, mas feliz. É realmente bom ter alguém por perto para não ser uma cebola perdida nas areias do tempo e esquecida numa praia.
Jornada pela Expressão Humana
Érica Favarin Dandolini cursa Cinema e Audiovisual na Universidade do Sul de Santa Catarina. Estagiária do Portal SCTodoDia desde 2022, já produziu podcasts e pequenos noticiários para o site. Atualmente, cuida das redes sociais, além de ser escritora de crônicas, contos e poemas.
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