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Quarta-feira, 29 de novembro de 2023

COLUNISTAS

Érica Favarin

Fábrica torta

16/11/2023 17h55 | Atualizada em 16/11/2023 13h38 | Por: Érica Favarin
Imagem feita por inteligência artificial

É o primeiro dia de trabalho de Cláudio.

Jovem, na casa dos 20, cheio de vigor e ainda com um pouco de esperança em tornar-se autossuficiente financeiramente, apesar da realidade claramente não-convidativa para sonhos.

A fábrica da Confeitaria Mielão é uma das mais famosas da região. Bolos, pães, doces e é claro, o carro-chefe, a queridinha, a que dá nome à marca, a torta Mielão: uma torta de melão de origem italiana.

Cláudio ficou feliz quando passou na estranha e estressante entrevista de emprego. O entrevistador olhou-o de cima a baixo e sua expressão era de pura reprovação para as roupas simples do rapaz (eram as melhores que ele tinha).

A pouca experiência também não o ajudava. O que sabia de preparar confeitos aprendeu ajudando a mãe a fazer entregas de salgados e docinhos para fora. O salário mínimo do pai metalúrgico infelizmente não dava para pagar todas as necessidades da família.

Logo, a felicidade dos pais de Cláudio ao saberem da novidade foi comovente. Sua mãe ficou horas no telefone contando toda a fofoca para as tias, irmãs e amigas. O pai foi um pouco mais resmungão, disse que o rapaz não estava fazendo mais que a obrigação, mas seu sorriso de canto carrancudo entregava seu contentamento.

Mas voltando para o presente.

Cláudio está prestes a preparar sua primeira fornada de pão d'água com outros 5 novatos selecionados. O chefe de expressão rígida os orienta, mas o rapaz não consegue parar de olhar a mono celha, as rugas e as linhas de expressão de seu superior. O conjunto da obra fazia-o parecer um personagem de desenho animado.

Do pouco que captou, Cláudio entendeu que os equipamentos eram velhos, enferrujados e apresentavam falhas constantemente; a cozinha era limpa uma vez por semana por uma empresa terceirizada que só de vista, dava para ver que fazia o serviço pela metade. Além disso, alguns utensílios como xícaras e balanças estavam em falta. A medida era feita no olhômetro.

Aos trancos e barrancos, os novatos fizeram a massa do pão francês.

Meio merda, mas dá pro gasto - ouviram o superior dizer em tom desgostoso.
Passada uma semana de frustrações e xingamentos, pois quando não era máquina que estragava, era ingrediente desperdiçado e isso se não errassem a receita ao esquecerem ou colocarem algo que não deviam, mas, em geral, as fornadas pareciam sair para venda.

Isso inquietava Cláudio.

Um tapa nas costas do chefe acordou-o para a realidade. Seu superior estava explicando como fazer a torta Mielão.

A prova final. Se alguém errasse essa receita em específico, era mandado para rua.

Ouvia-se nos corredores que até um funcionário com 20 anos de empresa foi demitido imediatamente após esquecer o "tempero secreto" que nada mais era que a mistura de bolo pronta.

O que foi? São muitas fornadas por dia, não dá para cozinhar todas as massas do zero como se fossem feitas na cozinha da Palmirinha.

Não me julguem. Palavras do dono. - Informou resoluto o chefe.

Iniciada a prova, Cláudio até estava indo bem. Bem até demais. Havia cometido erros constantes durante toda a semana, mas agora tudo era realizado de forma precisa e organizada. Praticamente perfeita.

Seria o desespero de manter a vaga?

Cláudio viu mentalmente os rostos dos pais decepcionados se ele voltasse a ser um Zé Ninguém desempregado.

Ele não podia aceitar isso. Não depois de tanto esforço, seja dos seus progenitores ou o seu próprio.

Mas como a felicidade de pobre dura pouco, um jovem mais baixo, mais novo e mais distraído que Cláudio, esbarrou no nosso protagonista e ele derrubou a bandeja de melão.

Todo aquele açúcar naturalmente divino agora melava o chão.

Só houve tempo para arregalar os olhos, encarar o chefe com a cara vermelha e linhas de expressão bem acentuadas, com direito à veia aparecendo nas têmporas.

O homem era basicamente um demônio. Vociferou contra Cláudio todos os tipos de xingamento existentes e arrastou-o para fora do estabelecimento.

Depois de um belo chute na bunda e o som da porta de metal fechando com força, Cláudio viu-se quase que literalmente no olho da rua.

Tamanha era decepção consigo mesmo que não podia nem chorar. Ainda estava em choque com os últimos acontecimentos.

Não havia nada a ser feito e o sol ainda estava alto no céu, o que significava que todos os seus amigos e parentes ou estavam trabalhando, ou curtindo a vida, logo não poderiam consolá-lo nesse momento aterrador.

O jeito é ir para casa. Os passos arrastados e o semblante fechado passam diante de uma vitrine.

A vitrine de bolos, pães, doces e é claro, a torta Mielão no centro, como uma cantora performando o seu último lançamento, toda enfeitada em ouro.

Entretanto, Cláudio está distraído demais para reparar na vitrine e seguiu reto.

Dentro da confeitaria Mielão, quase metade das mesas e banquetas do balcão estão ocupadas.

É hora do café da tarde para alguns. Uma fuga açucarada da rotina intensa.

Umas moças riem de algo no celular. Um rapaz come uma esfirra enquanto lê as notícias nas redes sociais. Um senhor come lentamente seu pão d'água com mortadela.

Na televisão, durante o intervalo de um desses programas de fofoca da TV aberta, passa uma propaganda da Mielão.

Massas bem amarelinhas em volta de farinha. Caldas reluzentes escorrendo por fuês.

Nas prateleiras da confeitaria, confeitos um pouco murchos, sem cor e com a calda endurecida.

Na propaganda, frutas bem fresquinhas e famílias felizes devorando os doces encerram o comercial com a locução alegre do narrador.

Na realidade, as frutas despencam das sobremesas e uma menina de uns 5 anos mostra-se descontente com um sonho recheado recém-entregue pela atendente.

Ela viu na propaganda um tão bonitinho, fofinho e gostosinho.

Aquele diante de seus olhos parecia pisoteado e tosco, quase seria o pão que o diabo amassou, mas o pouco de arrumação e conserto feito pelas funcionárias dava ao confeito uma aparência razoável.

A menina diz que não vai comer, porque quer um igual o do comercial.

Os pais envergonhados pela atitude dela pedem desculpas e dispensam a atendente.

Insistem que a garota coma, pois como imagino que já tenha ouvido falar, tanta criança passando fome no mundo e você recusando comida? Que coisa feia!

Ela persiste. A mãe ameaça com proibições de brinquedos, passeios e futuros doces no final da semana.

A menina não se importa com nada disso nesse momento. Quer o sonho da tv. É a imagem que ela quer e nem os dois quilos de açúcar com químicos saborizantes a fará gostar do sonho real.

Contudo, após ouvir do pai o quanto estava sendo chata, ridícula e fútil por querer algo que não existe, a garota emudece-se e toma o pobre sonho com o rosto e suas feições voltadas para baixo, formando uma meia-lua.

Seu único pensamento: não é tão ruim, mas poderia ser melhor.

Érica Favarin

Jornada pela Expressão Humana

Érica Favarin Dandolini cursa Cinema e Audiovisual na Universidade do Sul de Santa Catarina. Estagiária do Portal SCTodoDia desde 2022, já produziu podcasts e pequenos noticiários para o site. Atualmente, cuida das redes sociais, além de ser escritora de crônicas, contos e poemas.

Opiniões do colunista não representam necessariamente o portal SCTODODIA.com.br

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