Se me dissessem, há cinco, que um filme de três horas sobre uma trama política histórica, com diversas cenas em preto e branco, encheria salas de cinema em uma cidade de médio tamanho do Sul de Santa Catarina, eu não apenas duvidaria como soltaria um verdadeiro sorriso de descrença. Em uma geração onde os longas que fazem milhões em bilheteria são de super-heróis, aventuras com muito uso de computação gráfica ou remakes de obras da Disney, acreditar nesse primeiro cenário descrito parece pouco provável.
Oppenheimer, ainda que muito ancorado no contraponto de Barbie enquanto marketing, no entanto, conseguiu romper essa barreira. No momento em que este artigo vai ao ar, já são quase meio bilhão de dólares em bilheteria ao redor do mundo - tudo isso para, volto a reforçar, um filme de três horas que foge do “padrão sucesso de público” dos últimos anos.
Mas, afinal, seriam esses os pontos que fazem com que Oppenheimer seja um bom filme? Não. Na verdade, o longa do diretor britânico Christopher Nolan, um dos mais renomados entre o grande público na atualidade (ainda que extremamente questionado por outros), está longe de ser revolucionário para o cinema. Mesmo assim, consegue misturar elementos consagrados em grandes obras do passado e que, há tempos, não eram apreciados em massa nas telonas - com um quê de originalidade do cineasta.
Inspirado no livro Prometeu Americano, Oppenheimer discorre sobre a vida de J. Robert Oppenheimer, físico teórico estadunidense conhecido como o criador das bombas atômicas que destruíram Hiroshima e Nagasaki. O longa retrata três momentos da vida do cientista: o seu despertar para a teoria da física e a física experimental, a condução do Projeto Manhattan (que resultou na criação da bomba atômica) e julgamentos após o término da Segunda Guerra Mundial.
Em resumo, ainda que clichê, Oppenheimer retrata a ascensão e queda moral e profissional do físico que foi o principal responsável pela criação da bomba atômica, a maior arma de destruição em massa já utilizada no planeta. O longa retrata a jornada daquele que, em uma entrevista no século passado, parafraseou uma escritura hinduísta para se descrever da seguinte forma: “eu me tornei a morte, o destruidor de mundos”.
Em Oppenheimer, Nolan reconhece os seus limites enquanto cineasta, mas é capaz de controlá-los (ou ao menos camuflá-los) justamente ao potencializar suas qualidades. O filme é um retrato político, mas totalmente ancorado na disputa científica que marcou o momento mais terrível já vivido pela humanidade - e o diretor tem plena ciência disso.
O cineasta britânico retrata Robert J. Oppenheimer como um gênio da física, daqueles que é atormentado pelas próprias ideias a ponto de não conseguir dormir pensando em moléculas, átomos e afins. E é justamente na forma em que retrata esse conflito interno, o qual se estende ao longo de todo o filme, que Nolan consegue contornar um de seus principais pontos fracos.
O diretor nunca foi muito bom em construir dramas verdadeiramente convincentes em suas obras. E, ao contar a história de Oppenheimer, ele tinha em mãos uma tarefa muito difícil: mostrar o dilema moral do “pai da bomba atômica” sem tirar dele a responsabilidade de sua criação - ou, em outras palavras, sem “passar pano” para a história norte-americana.
Nolan consegue construir esse drama a partir de representações visuais, na maioria das vezes abstratas, que atormentam a mente do personagem principal. Sabendo que os diálogos talvez não seriam suficientes para nos convencer do conflito interno vivido por Oppenheimer, o cineasta recorre a imagens de explosões, agitação de moléculas e visões turvas e claustrofóbicas para ajudar a cumprir esse papel. Som e imagem, inclusive, sempre foram pontos fortes do diretor.
O longa também é marcado por uma sensação de urgência que dita o ritmo desde o primeiro minuto. Inicialmente, com o despertar do interesse de Oppenheimer por áreas específicas da física. Depois, pela corrida pela criação da bomba atômica, antes da Alemanha Nazista.
Até o momento do teste definitivo da bomba atômica, somos incubidos por um sentimento de urgência que é transmitido em tela pelos diálogos (verborrágicos, constantes e sobre temas complexos), pelo cenário político da Segunda Guerra Mundial e pelo conflito interno de Oppenheimer. Tudo isso com uma edição excelente, que conecta três linhas do tempo diferentes, e uma trilha sonora impecável para com o filme.
Nolan consegue fazer com que discussões sobre a física, um tema extremamente complexo, por vezes monótono para leigos e muito abstrato, seja interessante a ponto de te deixar na ponta da cadeira do cinema, prestando atenção em cada linha de diálogo.
Além disso, o diretor faz questão de não ignorar as discussões políticas que, obviamente, permearam a construção da bomba atômica. A relação de Oppenheimer com o comunismo é explorada, ainda que em alguns momentos de forma um pouco superficial, durante todo o longa. O cineasta também não fecha os olhos para a perversidade dos Estados Unidos durante esse período, com diálogos pontuais que deixam claro que a disputa norte-americana na Segunda Guerra Mundial tinha muito mais a ver com o status de poder do que necessariamente com a missão de frear os nazistas.
Qual foi a minha surpresa, então, quando um filme tão frenético em termos de diálogos, sons e contexto, tem o seu apogeu justamente em uma cena de pleno silêncio. Não falarei aqui qual é, mas posso afirmar que foi uma das coisas mais interessantes e impactantes que eu já vi em uma sala de cinema.
Oppenheimer não é um filme perfeito. Nolan segue sem ser capaz de dirigir personagens mulheres sem que estas sejam apenas apoios para a construção dos protagonistas e coadjuvantes homens. Apesar de Emily Blunt e Florence Pugh estarem muito bem em termos de atuação, no fim das contas elas acabam caindo no famoso retrato machista da mulher histérica. A cena de sexo existente no filme, inclusive, soa quase como uma ofensa, de tão desnecessária para a história, para o personagem, e para o longa como um todo.
A missão mais difícil, no entanto, era a de retratar Oppenheimer sem que ele fosse resumido a uma vítima da Guerra, um “cientista genial cuja criação foi desvirtuada e utilizada por pessoas ruins”. No longa, o diretor conseguiu capturar a dualidade da figura histórica no sentido de deixar claro que sua criação, desde o início, foi fundamentada para a destruição, e que por mais que não tivesse sido o seu objetivo jogar uma bomba atômica no Japão, ele conduziu a construção e participou da discussão de onde depositar a arma. Sendo assim, terá que conviver com o genocídio causado por aquilo que ajudou a criar.
Cillian Murphy está muito bem no papel de Oppenheimer, o qual deve lhe render indicações nas principais premiações do cinema. O ator, além de ser realmente parecido com o físico estadunidense, consegue expor em tela muito bem o dilema por fim vivido pelo personagem, em momentos onde, confrontado com a sua própria criação, se vê imerso quase que em um filme de terror.
Além disso, quando digo que Nolan reconhecesse os seus limites, não me refiro apenas à forma com que ele contorna sua deficiência na construção de dramas. O diretor também toma uma decisão ética que, na minha opinião, foi extremamente assertiva: a de não mostrar visualmente a destruição de Hiroshima e Nagasaki.
Colocar o retrato de um dos momentos mais horríveis da história da humanidade, de um crime cometido contra orientais, na mão de um cineasta ocidental, pode facilmente descambar para uma situação de desrespeito. Isso não significa que o diretor fecha os olhos para esse fato - pelo contrário. Em uma cena específica, inclusive, ele faz questão de retratar o terror desse feito a partir da mente de Oppenheimer.
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Cinema em Cena
Paulo Monteiro é repórter da Rádio Cidade em Dia, de Criciúma, jornalista profissional e um apaixonado pelo mundo do cinema e cultura pop. Com passagens por veículos de imprensa de Criciúma, já escreveu sobre a sétima arte também para o Cinetoscópio e CineVitor.
Opiniões do colunista não representam necessariamente o portal SCTODODIA.com.br