In-Yun é uma palavra em coreano cujo significado não pode ser inteiramente traduzido para outra língua, mas que gira em torno da ideia de que existe um porquê de duas pessoas se encontrarem. Se dois estranhos se esbarram, seja em uma rua ou em um espaço randômico, deve ter havido algo entre eles em vidas passadas. Nenhuma conexão é realmente por acaso.
Apesar de trazer um certo conforto, a ideia de que o encontro entre duas pessoas perpassa por um motivo e está relacionado a algo do passado não traz nenhuma certeza. Afinal de contas, de acordo com a própria interpretação sul-coreana sobre In-Yun, existem algumas camadas que separam esses encontros entre as vidas passadas e a presente.
E é essa percepção sobre conexões humanas o fio condutor de Past Lives, filme de estreia da cineasta e dramaturga coreana Celine Song. O longa-metragem, produzido pela A24, brinca com a ideia de tempo, destino e amor de uma maneira muito original e cultural - como poucos romances são realmente capazes de fazer.
Em Past Lives acompanhamos a história de Na Young e Hae Sung, dois amigos de infância profundamente conectados que se separam depois de uma mudança. Na Young deixa a Coréia do Sul ainda criança para ir aos Estados Unidos, junto de seus pais. Hae Sung permanece, com as memórias de um relacionamento de amor e amizade interrompido ainda em suas primeiras camadas.
Nos Estados Unidos, a jovem coreana adota o nome de Nora e se torna uma escritora - sonho que cultivava desde criança. Já Hae Sung segue sua carreira, estuda em uma das melhores universidades do país e se forma engenheiro.
Os dois se encontram 12 anos após a primeira separação, mas, desta vez, com um oceano inteiro separando-os fisicamente. Pela internet, eles voltam a fazer parte da rotina um do outro, com conversas e debates que compõem uma conexão que Nora, nos Estados Unidos há mais de uma década, não tinha desde que imigrou.
Apesar de intensa, a conexão chega ao fim em um determinado ponto, e só volta a ser estabelecida mais de dez anos depois do reencontro - desta vez, tanto física quanto presencialmente.
Past Lives (ou Vidas Passadas, em português do Brasil) é um reflexo sensível e extremamente bonito sobre amores e conexões. Ancorado na vida de dois personagens, o longa-metragem consegue trazer de maneira singela e profunda muitos dos temas que acompanham a imigração.
Nora, nossa personagem principal, vê no reencontro virtual com seu amigo de infância o mais pleno conforto de se conectar com o seu passado na Coreia do Sul. Depois de tanto tempo nos EUA, longe da cultura onde foi criada e educada, a escritora consegue retomar uma conexão com o seu lar por meio de uma das pessoas mais importantes de sua vida até o momento em que deixou o continente asiático: Hae Sung.
Os dois primeiros arcos do filme se propõem a construir esse conforto que é voltar a conversar com um amigo (ou amor de infância). São nas conversas por vídeo-chamada com alguém do outro lado do Pacífico que Nora pode voltar a praticar o seu sul-coreano e falar de coisas de sua infância que ninguém que ela conhece nos Estados Unidos entenderia, por nunca terem vivido.
Ao mesmo tempo, é a oportunidade de Hae Sung de dar sequência a um relacionamento que foi interrompido repentinamente na infância. Os dois não saiam de perto um do outro até que, quase de um dia para o outro, tiveram que lidar com a ausência por mais de uma década.
Esse conforto que reside na retomada quase que nostálgica ao passado, no entanto, só existe por conta da distância. Nora e Hae Sung não estão fisicamente presentes todos os dias e, portanto, não precisam necessariamente encarar o que passou, apenas relembrar das coisas boas que estão lá atrás.
E para retratar isso, Celine Song não recorre ao excesso de flashbacks e nem nada do tipo. A cineasta utiliza das pausas entre diálogos, acompanhadas de sorrisos bobos nos rostos de Nora e Sung, luzes indiretas e amareladas de abajures e da ideia de que, mesmo quando estão sozinhos (em uma biblioteca, no quarto ou no trem), ambos estão focados na companhia um do outro.
O conforto, no entanto, deixa de existir a partir do momento em que o reencontro físico passa a ser uma possibilidade. A ideia de encarar de fato o passado se torna um peso na vida de ambos. Mais difícil do que isso é lidar com o pensamento de “o que seríamos se tivéssemos ou não tivéssemos feito isso?”.
Past Lives consegue retratar muito bem a angústia do “e se”. E se Nora não tivesse deixado a Coréia do Sul? E se tivesse mantido contato com Sung no primeiro reencontro? E se não tivesse construído uma vida nos Estados Unidos antes de ser confrontada, novamente, com o seu passado?
Em nenhum momento o filme tenta nos responder precisamente a todos esses questionamentos, que pairam sobre os protagonistas de maneira muito fluida e verdadeira. Na verdade, as perguntas esbarram sempre na ideia do In-Yun, de que existe um propósito no encontro entre duas pessoas, mas que reside, de alguma forma, no passado.
Por fim, a complexidade desses relacionamentos é perfeitamente retratada na direção de Celine, que opta por recursos de visuais de narrativa inteligentes na hora de contar essa história (como resumir 10 anos em um diálogo de um minuto na entrada do aeroporto), e nas atuações de Greta Lee (Nora), Teo Yoo (Sung) e John Magaro (Arthur).
Os três transparecem muito bem, com ou sem diálogos, o quão consumidor podem ser as dúvidas relacionadas ao amor. São muitas as camadas que compõem um relacionamento: cerca de 80, segundo o In-Yun.
Nota: ⭐⭐⭐⭐⭐
Para ler mais sobre cinema me siga no Instagram, Twitter e Letterboxd. Confira o trailer de Past Lives:
Cinema em Cena
Paulo Monteiro é repórter da Rádio Cidade em Dia, de Criciúma, jornalista profissional e um apaixonado pelo mundo do cinema e cultura pop. Com passagens por veículos de imprensa de Criciúma, já escreveu sobre a sétima arte também para o Cinetoscópio e CineVitor.
Opiniões do colunista não representam necessariamente o portal SCTODODIA.com.br